Garantido por lei, abrir mão do filho também é direito da mãe que não quer ou não pode cumprir seu papel.

Às vezes elas pedem para não ver o bebê. Não querem dar um rosto à culpa que podem vir a carregar no futuro. Nos últimos três anos, 66 mães decidiram abandonar seus filhos ainda na maternidade. Metade delas seguiu com o processo que começou ainda na gestação: de entregar o bebê para adoção. Garantido por lei, abrir mão do filho também é direito da mãe que não quer ou não pode cumprir seu papel.

O Lado B foi ouvir histórias de quem convive de perto com a ideia que soa tão absurda e condenável, a de abandonar um filho, mas que podem ensinar muito sobre amor e quebram o mito de que maternidade é para todas as mulheres.

Assistente social judiciária, Rita Diniz Santos, de 55 anos, têm cinco no núcleo de adoção do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul e sete meses à frente da coordenação que também abraça o projeto “Dar a luz”, criado em 2011 para atender a exigência da legislação que prevê que gestantes e mães que manifestem interesse em entregar seu filho para adoção são obrigatoriamente encaminhadas à Vara da Infância e Juventude.

Na prática, Rita vê chegar gestantes que foram encaminhadas de postos de saúde, maternidade ou hospitais, ou que procuraram na internet sobre o projeto. “Quando ligam já falam: ‘quero dar meu filho para adoção'”, conta Rita.

Num primeiro momento, a assistente social relata que são mulheres desesperadas e com culpa nos olhos. De perfil, são gestantes das classes baixa à mais alta e as justificativas vão desde falta de condições socioeconômicas até “projeto de vida”. “Quando a criança não encaixa no projeto de vida da mãe. A gente fica meio assim, mas é uma categoria que está surgindo”, explica.

Ao escolher seguir carreira no judiciário, a assistente social conta que sabia o que veria pela frente. E uma das primeiras entrevistas, ainda em Dourados, anos atrás, abriu caminho para a compreensão que hoje ela diz ter. No fundo, o que as mães procuram é uma “solução”.

“Era uma profissional do sexo e eu perguntei: ‘mas porque você está aqui? E ela me levou para ver o pai, com câncer terminal, por isso ela estava ali, porque ganhava mais que um salário mínimo para bancar toda medicação. Ela explicou e eu não pude falar mais nada. Foi bom, porque eu passei a entender cada uma”, lembra.

Como assistente social, essas histórias ensinaram Rita a não discriminar ninguém. Nem uma mãe que entrega um filho. “Minha única angústia é quando elas falam: ‘quero me ver livre disso aqui’, mas foram coisas que eu fui aprendendo com cada gestante, cada ser humano. As mães também estão abandonadas e ela entregar um filho é proteger. Tanto é que o processo entra como ‘medida de proteção'”, explica Rita. “E a gente precisa respeitar a decisão dela”, completa. No fim, o sentimento é um só: o de estar salvando vidas. “Porque a partir do momento que ela veio e nos procurou é porque ela não partiu para fazer um aborto. Isso para mim é salvar vidas”.

Estagiária em Serviço Social no núcleo, Talitha Carvalho Araújo, tem 32 anos, quatro filhos e estuda para a conclusão de curso, o projeto. “Não é um crime, elas estão sendo culpadas é pela cultura que a gente tem de que a mulher engravidou e tem de ser mãe e não é bem assim. A Psicologia explica que tem mulher que não tem a maternagem”, compara.

No dia a dia, a estudante diz que a primeira coisa a ser rompida foi o julgamento e ter em mente, bem claro, que o papel dela é de garantir os direitos das pessoas. “E é um direito da criança estar em um ambiente familiar dentro de todas as garantias de educação, família, escola, o que essa mulher não vai poder proporcionar”, argumenta.

Mais que ser realista em admitir o que não pode dar, Talitha vê essas gestantes praticando um gesto de amor. “É amor, também da parte dela, em entregar para alguém o que ela não quer ou às vezes não pode fazer. E o que a gente aprende é que tem que ter uma força muito grande para isso”, resume.

Do outro lado da ponta, está quem faz este atendimento quando a mulher entra para banhar bebê. Jackeline Medeiros Pereira tem 34 anos, é psicóloga na Maternidade Cândido Mariano, e entende que entregar para adoção é bem diferente de abandonar. “É uma decisão difícil, mas a gente sabe que é consciente. Quando a mãe decide entregar, ela está dando a essa criança a chance de ter aquilo que ela não pode prover”.

É com ela que o contato chega ao “clímax”, quando a mulher ouve o choro do bebê e ainda assim, quer distância. “A maioria prefere não olhar, porque basta olhar para começar um vínculo e as que escolhem ver, é como se fosse uma despedida, porque depois não veem mais”, explica.

A maioria dos casos que ela atende são de mães que não podem prover materialmente ou emocionalmente. Quando a mãe não pode, se entende, quando ela não quer, se respeita. “A gente entende e respeita a decisão delas”, diz Jackeline. Mas a aceitação é um processo e bem complicado.

“Me lembro da primeira mãe que eu atendi – trabalhar no projeto foi um amadurecimento – essa coisa de que mãe não pode abandonar bebê está entranhado em qualquer pessoa”, pontua a psicóloga.

A jovem tinha 25 anos e uma filha de 4. “Quando eu fui conversar, perguntei o que ela sentia pelo bebê e ela disse: ‘eu não sinto nada’, Nossa, na época a minha filha tinha 1 ano e pouquinho e aquilo foi uma facada. É difícil compreender as razões da mãe, porque quando você gera, imagina uma história de vida dessa criança dentro da sua vida e de repente você se depara com uma mãe que não quer essa criança na vida dela?” se pergunta.

Foi aí que ela aprendeu, na prática, que o amor incondicional de uma mãe é um mito e que não vale para todas as mulheres. “Cada mãe que veio chegando, eu fui conhecendo as histórias e entendendo o processo. Todo mundo tem seu lado religioso, espiritual e eu tenho certeza de que Deus prepara essas mães para gerar um filho para outras mães. Não tem outra explicação”, acredita.

Um ano atrás, uma mãe deu a luz e não quis ver o rosto do bebê. A criança chorava tanto e depois de horas, ela decidiu pegá-lo no colo. “Ela pôs ele de frente assim e conversou. Foi uma coisa que fica na cabeça da gente, porque foi como se ela dissesse que estava fazendo aquilo porque era o melhor que poderia dar naquele momento e que era por amor. Ele não chorou mais. Ali foi como se fosse o consentimento dessa separação”, se emociona Jackeline.

A mãe que deixa o filho para trás vivencia o luto por alguém que continua vivo, mas não com ela. As crianças que são entregues para adoção assim, têm direito de ir atrás da mãe quando completar 18 anos. Antes disso, o processo é segredo de justiça.

“E vou te dizer, que muitas dessas mães estão vivendo à espera desse reencontro. Têm crianças hoje com 4, 5 anos, então faltam aí 13, mas é uma incerteza. O que eu sinto é que algumas mulheres são muito fortes a ponto de abrir mão de algo importante que é seu filho e por amor e eu tenho um respeito enorme pelas que decidem fazer isso”.

 

Por Paula Maciulevicius, Lado B – Campo Grande News.

 

Reportagem extraída do site Campo Grande News, coluna Lado B, publicada originalmente em 11/08/2016. Foto de abertura: Fernando Antunes.

Link com reportagem original: https://www.campograndenews.com.br/lado-b/comportamento-23-08-2011-08/rotina-na-maternidade-mostra-que-entregar-para-adocao-e-diferente-de-abandonar

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